Estamos em 2018 e nunca a música eletrônica foi tão popular. Mesmo os “superstar DJs” da geração de ouro, no fim dos anos 90, como Chemical Brothers, Prodigy e Fatboy Slim, não vivendo seus melhores dias, são capazes de encabeçar festivais e arrastar um grande público. Mas nem toda música eletrônica é para dançar. Ou talvez seja, desde que se compreenda o objetivo de cada produtor. E com certeza esse não foi o objetivo do duo francês formado por Jean-Benoît Dunckel e Nicolas Godin, as duas metades do duo francês Air, que em 2018 comemora duas décadas de sua principal obra, o seminal Moon Safari.
Antes de qualquer coisa, é necessário ficar claro que Moon Safari não é a Pedra de Rosetta do downtempo, houveram diversos lançamentos ligados ao movimento que viria a ser conhecido como Lounge Music muito antes, mas sua importância é tão vital quanto o auge do breakbeat com o Chemical Brothers, época em que Block Rockin Beats era sucesso até em rádios especializadas em rock. Resumindo, a importância do lançamento do Air viria a definir a estética de tudo que seguiu pelos anos posteriores.
Clássico, Moon Safari é a maturação do EP Premiers Symptômes, lançado um ano antes pelo duo francês, já pela monstruosa Virgin Records. Na época a França vivia o auge do movimento conhecido como French Touch, que levou ao estrelato nomes como Cassius e Daft Punk, por isso a designação para a produção do EP coube a nada menos que o lendário produtor Étienne de Crécy. Já em Moon Safari somente Dunckel e Nicolas definiriam os rumos do disco, apesar da boa resposta do público para singles como Modular Mix e Casanova 70.
Diferente de toda onda ocorrida na música eletrônica francesa, o Air nunca se amparou na house de Chicago para moldar sua música. Orgânica demais para fazer dançar, o duo sempre clamou por uma música mais humana, de referências que vão do jazz ao soul, para ampliar ainda mais seu leque após Premiers Symptômes.
Gravado nos estúdios Abbey Road, aquele mesmo dos Beatles, Moon Safari é um mergulho profundo por linhas vocais e texturas criadas a partir de violões, pianos e até glockenspiels, uma espécie de xilofone produzido na Alemanha e referência nas obras de Carl Orff (e até Mozart). Tudo isso ao lado de sintetizadores, órgãos e uma verdadeira avalanche de engenhocas pilotados por Dunckel e Benoit.
Composto por 10 faixas, Moon Safari sempre esteve presente na prateleira eletrônica de qualquer galeria, mesmo sendo um disco que exala humanidade. Sexy Boy, maior single da história do Air, evoca elementos de synthpop e foi responsável direto pela penetração da música do duo no mercado americano. Com videoclipe produzido pelo “hypado” Mike Mills, estourou na MTV e abriu as portas para o disco de maior sucesso dos franceses, ainda que seu principal single deixasse uma impressão diferente do que encontrado dentro do álbum.
La femme d’argent, faixa que abre Moon Safari, é de longe o retrato mais perfeito daquilo que o duo se prestou a fazer durante toda sua carreira. Construído milimetricamente a partir da gama de instrumentos reunidos pelo Air em Abbey Road, impressiona pela forma como soa orgânico, mesmo com samples de Runnin, do soulman Edwin Starr. Aconteceu da mesma forma que All I Need, que contou com os vocais da americana Beth Hirsch. Com uma atmosfera agridoce e até mesmo melancólica, a música soava real, mas ainda era oriunda do mundo da música eletrônica. Era essencialmente o que estabeleceu-se como “downtempo”.
Para entender o downtempo é dar um salto de pelo menos dez, doze anos para o passado a partir do lançamento de Moon Safari, quando os primeiros volumes de séries como Cafe del mar e Hôtel Costes começavam a ser lançados. São músicas marcadas principalmente por a padrões de ritmo mais espaçados, dando a possibilidade do produtor em preencher essas trilhas com mais linhas melódicas e harmônicas. Nesse caminho houveram muitos artistas que se destacaram, especialmente na França. Um bom exemplo (e que vale a procura) são os primeiros álbuns de Mr Oizo e St. Germain.
O que torna Moon Safari acima da média é justamente a condição que Dunckel e Nicolas deram para sua música em ser tão humana frente a tudo o que havia sido lançado anteriormente. Há ecos de soul, do movimento new romantic dos anos 80 e até com o synth pop, mas é eletrônico, mesmo não sendo necessariamente. Quem adentrasse ao estúdio da dupla francesa certamente pensaria estar diante de um estúdio de uma banda de rock progressivo inglês dos anos 70. Instrumentos como melotrons, órgãos e pianos se fundiam a sintetizadores e guitarras.
Obviamente Moon Safari foi um sucesso para a crítica especializada, mas só para ela. Ao todo, mesmo no auge da indústria fonográfica, o disco do Air não ultrapassou 2 milhões de cópias, algo estranho quando pensamos em um disco tão influente. De repente, após anos sendo acusada de superficialidade, finalmente um artista dava alma para uma música que parecia destinada somente a um público-alvo. O Air era cult. Com elogios aos quatro cantos do mundo ainda houve tempo para que faixas como Kelly Watch the Stars, uma homenagem a Kelly Garrett, das série Charlie’s Angels, e faixas como Talisman e You Make It Easy marcassem as madrugadas de um público descolado e alheio à ferveção das pistas. O Air se tornava uma referência dentro do concorrido e dinâmico mundo da música eletrônica.
Coleções de lounge music/downtempo e artistas nascidos em toda a Europa. Tudo o que aconteceu depois de Moon Safari se tornou diferente. De repente tudo era orgânico e agregador, tal qual o disco de estreia dos franceses. Com samples ou com bandas, a estética do downtempo teve seu status modificado, ainda que hoje, duas décadas depois, isso pouco signifique dentro desse mutável universo. Mas ali, naquela época, nada soou com o Air. E talvez nada se modificasse se a dupla não ambicionasse algo tão humano. Subversivos e de natureza punk, os integrantes da dupla nunca esconderam a ojeriza da cena francesa inspirada na House Music de Chicago. Caminhar na contramão parecia um caminho natural. E foi.
Celebrando seu feito, uma edição com remixes foi lançada dez anos depois. Outros detalhes podem ser encontrados no DVD Eating Sleeping Waiting & Playing, que teve produção do amigo Mike Mills. Mas pouco além disso. Sem o glamour da EDM e longe dos holofotes, o Air hoje cuida de sua vida com uma realidade muito particular, de trilhas sonoras, vocais suaves e números muito menos expressivos, mas que ainda encantam – senão a sua bolha de fãs e a crítica especializada – àqueles que ainda se permitem buscar uma música que se descolou da realidade quando lançada e até hoje é referência para qualquer artista.