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Bob Marley e o Woodstock do 3º mundo

15 de janeiro de 201811 min read

Realizado em 1969, o Woodstock é seguramente um dos mais importantes marcos na história da música por todo idealismo que cada dia do evento carregava dentro de si. A ideia de três dias de paz e muita música contaminou toda uma geração e sua importância é medida até hoje ao redor do planeta. Quase 20 anos depois o Live Aid também se transformou em um marco fundamental do poder da música e sua capacidade em ajudar o próximo. Porém pouco se fala sobre o One Love Peace Concert, que celebra quatro décadas de sua realização.

Observando os livros de história não é difícil perceber que a Jamaica nunca teve suas questões sociais e políticas bem resolvidas. São choques culturais que transformaram o pequeno país insular localizado no mar do Caribe em uma espécie de Babilônia, resultado da chegada de escravos africanos à ilha durante o período colonial, a influência britânica pós-independência e a aproximação de Cuba e dos russos no período da Guerra Fria… tudo isso mexeu de alguma forma com a personalidade de um povo que no auge de sua crise cantou o amor na figura de seu maior nome, Bob Marley.

A expansão do movimento Rastafari, a luta pela legalização da maconha (já retratada nesse site através da luta de Peter Tosh) e a escalada vertiginosa da violência no país culminaram em uma reta final de década onde as duas frentes do país travavam literalmente uma guerra. Tudo isso graças à aproximação de ambos com gangsteres locais para manter o poder.

Na época controlada por Michael Manley, a Jamaica escancarou problemas estruturais ao longo da década que culminaram no auge da rivalidade entre Manley (PNP) e Edward Seaga, do Trabalho Jamaica Party (JLP), onde ambos agiam como verdadeiras facções dentro da ilha, que vivia um verdadeiro clima de Guerra Civil. Para se ter ideia do tamanho dessa encrenca, o próprio atentado sofrido por Bob Marley em 1976, quando foi atingido no braço por dois tiros dias antes do festival Smile Jamaica deriva dessa condição, já que o engajamento da lenda do Reggae sempre foi sua maior marca.

Com a sociedade atolada em um esquema de violência endêmica, o surgimento do One Love Peace Concert só poderia nascer da parceria de ambos os lados, ironicamente iniciada na cadeia, onde Claudius Claudie” Massop (JLP) e Aston ‘Bucky´ Marshall (PNP) perceberam que a única forma de unificar o povo jamaicano era através da música e, claro, através de Bob Marley, que naquela momento vivia em Londres.

Após cumprir sua pena, Massop viajou para o Reino Unido disposto a convencer Bob Marley de que a realização de um festival baseado em um de seus maiores clássicos seria o caminho para a paz na Jamaica. Não foi difícil obter o “sim” da lenda do Reggae, fazendo com que o festival fosse agendado para o dia 22 de abril, sendo realizado no The National Stadium, de Kingston.

Não era uma época fácil para a América Central. Vivendo seu momento mais turbulento, países como a República Dominicana e Guatemala também passavam por uma crise política e a repressão colhia suas vítimas aos quatro cantos do continente. Enquanto isso o line up do One Love Peace Concert ganhava forma com uma verdadeira legião de grandes nomes do reggae. Além de Bob Marley, que estampava os cartazes celebrando o retorno ao país onde nasceu, destacava-se também a presença de lendas como Peter Tosh, Bunny Wailer, Mighty Diamonds, Junior Tucker, Dennis Brown, Big Youth, Jacob Miller and Inner Circle.

O engajamento dos artistas levou a mídia mundial a apelidar o One Love Peace Concert como Woodstock do 3º mundo, tamanho o engajamento empenhado por seus organizadores e artistas até a realização do evento., que contaria com mais de 12 horas de música e discursos.

Não, não foi tão grande como o Woodstock original. Ao contrário das 300 mil pessoas do evento americano, 30 mil pessoas lotaram o The National Stadium, mas em cada discurso, cada faixa, um clamor por união tomava conta do local, culminando na volta de Bob Marley ao país, quando subiu ao palco pouco mais de meia-noite.

Muitas lendas cercam esse momento. Considerado por muitos como um enviado de Jah, assim como por outros a própria reencarnação do messias, Bob Marley levou seu show ao clímax durante a execução da faixa Jamming, que inicia o seminal Exodus, disco de 1977, chamando ao palco nada menos que Michael Manley e Edward Seaga, rivais históricos, para de mãos dadas com ambos proferir um dos discursos mais importantes da história da Jamaica.

“Apenas deixem-me dizer-lhe alguma coisa para fazer tudo se tornar realidade. Temos que estar juntos! E através do espírito do Altíssimo, Sua Majestade Imperial, Imperador Haile Selassie I, estamos convidando algumas pessoas descendentes dos escravos para dar as mãos aqui comigo. Para mostrar às pessoas que elas podem se amar, para mostrar as pessoas que elas podem se unir, mostrar todo o seu brilho e mostrar às pessoas que tudo está bem.

Eu não sou tão bom com as palavras, mas eu espero que vocês entendam o que eu estou tentando dizer. Bem, eu estou tentando dizer que poderíamos ter, poderíamos ter aqui em cima no palco aqui a presença do Sr. Michael Manley e Edward Sr. Seaga. Eu só quero apertar as mãos e mostrar às pessoas que nós vamos fazer isso do jeito certo, nós vamos nos unir, vamos fazer isso certo, temos que nos unir. A lua está certa sobre a minha cabeça e eu dou o meu amor em seu lugar.

Conta-se que no momento em que proferiu o nome do imperador Haile Selassie, considerado a primeira encarnação de Jah e figura de suma importância no continente africano, um raio cortou o céu jamaicano. Só após o trio dar as mãos e fazer a emoção tomar conta do estádio é que Jamming voltou a ser executada. Um momento épico na história.

Para se ter uma ideia da importância desse momento, três meses depois Bob Marley receberia da ONU a Medalha de Paz do Terceiro Mundo, entregue por sua busca pela paz na ilha do Caribe. O set do show ainda traria faixas emblemáticas da carreira da lenda do reggae como Natural Mystic, Trenchtown Rock, Positive Vibration e, claro, One Love, precedida da versão de Bob Marley para People Get Ready, de Curtis Mayfield.

Tudo poderia ter sido diferente dali por diante, depois que dois lados opostos cantaram juntos pela paz na Jamaica… mas não foi.

Contrariando toda importância do One Love Peace Concert, nada mudou na crescente escalada de violência do território jamaicano. Ironicamente Massop e Marshall, responsáveis pelo nascimento do festival, seriam assassinados dois anos depois. Peter Tosh, que realizou um dos mais fortes discursos do festival, chegou a ser agredido por horas pela polícia como represália de algumas frases proferidas no estádio. E a história seguiu seu curso normal…

Meses depois Michael Manley venceria novamente uma eleição com longa margem de votos, sendo acusado de utilizar o evento para se aproximar do povo jamaicano. Ele e Edward Seaga só se encontrariam então 3 anos depois, em maio de 1981, quando apertaram as mãos mais uma vez, mas agora durante o funeral de Bob Marley.

E ainda que não tenha mudado o curso da história da Jamaica, One Love Peace Concert é fundamental para compreender o poder da música e tudo o que ela proporciona, ainda que não a longo prazo. E mesmo que não seja exatamente o Woodstock do 3º mundo, o festival se junta ao lado de momentos épicos como o argentino Hasta que se ponga el sol como pilares da cultura latina, onde muito além da música o sentimento de paz em tempos difíceis daria forma ao evento.

Anderson Oliveira

Diretor de Arte há duas décadas, fã de Grateful Dead e Jeff Beck, futuro trompetista e em constante aprendizado. Bem-vindos ao meu mundo, o Mundo de Andy.

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