Uma das vertentes musicais mais lindas que o mundo teve a honra de conhecer, o flamenco é um daqueles patrimônios da humanidade mantido vivo por artistas que amam o gênero como um verdadeiro membro da família. Um bom exemplo é o de Juan Gómez Chicuelo, guitarrista de flamenco premiado (ganhou o Goya, em 2013), com extensa atuação solo ou acompanhando cantores como Enrique Morente e Miguel Poveda.
Atração do sempre ótimo Jazz na Fábrica, evento que proporciona o encontro do jazz com outras vertentes musicais, Chicuelo vem ao Brasil acompanhado de amigo Marco Mezquida, pianista escolhido quatro vezes “músico do ano” pela Associação de Músicos de Jazz e Músicas Modernas da Catalunha e que já se apresentou ao lado de jazzistas como Lee Konitz e Bill McHenry.
Depois de lançarem o sensacional Conexíon, disco que proporciona o feliz encontro entre o jazz e o flamenco, a dupla – que ao vivo se apresenta como um trio, ao lado de Jacobo Sánchez (percussão) – vem ao Brasil para apresentar essa junção de ritmos que, claro, nutre uma paixão pela música brasileira. Além de fã, Chicuelo realizou uma versão magistral de Amigo, clássico de Roberto Carlos, e se declara fã de artistas como João Gilberto e Tom Jobim.
Mantendo a tradição de nomes como Paco de Lucía e Pepe Habichuela, Chicuelo conversou com o Passagem de Som sobre sua passagem pelo país, a parceria com Marco Mezquida e diversos outros assuntos.
A participação no festival Jazz na Fábrica
Juan Gómez Chicuelo: Nossas expectativas são a de que todos os aqueles que forem nos ver possam curtir muito esse projeto que realizei com Marco Mezquida. Esperamos que ele seja bem recebido no Brasil, que é um país tão rico musicalmente. Vamos ao país com as melhores expectativas.
A parceria com Marco Mezquida
Juan Gómez Chicuelo: Nossa amizade começou graças a um conceituado trompetista espanhol chamado Raynald Colom, que nos convidou para participarmos de um renomado festival francês chamado Marciac. Foi lá que nossa amizade nasceu. Ter esse sentimento tão bom com um amigo é algo que nem sempre acontece com todas as pessoas, menos ainda com músicos. Mais tarde, a renomada escola Taller de Músics nos convidou para a abertura de um novo espaço e percebemos que essa sintonia não poderia se restringir somente a uma única música ou um único show. Sabíamos que era hora de fazer algo para gravarmos e realmente nos sentirmos satisfeitos. Marcos trouxe até mim toda sua criatividade, espontaneidade, musicalidade e como devíamos arriscar na música. Isso fez com que eu me tornasse um músico melhor e essa é uma parceria que me deixou muito feliz.
O Flamenco de ontem e hoje
Juan Gómez Chicuelo: Nós realmente temos muito a agradecer a artistas como Paco de Lucía, Pepe Habichuela, Enrique Morente, Camarón… Eles foram nomes que abriram esse caminho e derrubaram as paredes que nos distanciavam de outros artistas e outros tipos de música. Graças a eles essa aproximação se tornou algo mais fácil. Eu tenho dito há muito tempo que vivemos um ótimo momento para o flamenco porque ele vive uma fase incrível. Sempre foi, na verdade!
Em todos os lugares do mundo encontramos pessoas que gostam do flamenco e querem saber mais sobre nós para realizarem parcerias… Eu acho que isso fala por si. Quando outros países convidam você para tocar a música flamenca ou então colaborar com seus músicos significa que existe um interesse. É por isso que acredito que o flamenco está mais vivo do que nunca e que está em boa forma.
A adaptação do mercado em relação à música flamenca
Juan Gómez Chicuelo: Eu realmente sou um músico aberto e acho que a chegada de qualquer novo instrumento para qualquer tipo de música, seja heavy metal, pop, rap, jazz … sempre vai ser algo muito bom. Tudo o que envolve esse processo de incorporar novas influências e revelar novos artistas dá outras cores para o mundo da música. Eu amo isso! Mas eu sempre gosto de ter muito claro qual a essência e as raízes de cada tipo de música, de cada movimento. O flamenco é uma junção de canto, guitarra, dança e palmas. Todas as outras coisas que são acrescidas a isso nos dão outros caminhos, mas acredito que a essência dessa instrumentação e sua razão de existir são o grande charme do flamenco. No momento em que nós começamos a inserir muitos elementos nesse tipo de música, o que é importante se torna menos do que deve ser.
O flamenco contra o dinamismo da música contemporânea
Juan Gómez Chicuelo: Eu acredito que tudo na história da música sempre teve duas faces. São músicos que sempre basearam suas músicas em um nível artístico elevado, uma questão de pesquisa e étnica, e outros que a fizeram simplesmente como uma música para entretenimento, menos sofisticada. Isso sempre aconteceu e sempre vai acontecer, é normal. Na minha opinião o flamenco, o jazz e a música brasileira sempre tiveram uma profundidade muito grande repleta de harmonias e ritmos, não estando disponíveis a todos. Existe nesse tipo de música algo que atrai o público e desperta uma paixão.
A maioria dos jovens quer ter tempo para curtir e talvez o flamenco não seja feito para isso, acho que essa é a dificuldade da aproximação desse público com esse tipo de música. É algo geral, as pessoas não querem quebrar suas cabeças para entender ritmos etc. Isso é algo normal, que sempre aconteceu e vai continuar acontecendo sempre.
O flamenco é uma música muito complicada e difícil, por isso sempre tive muito claro para mim que seria uma música que chegaria a um público reduzido. Acho em alguns momentos que talvez não existam tantas pessoas que tenham a condição de entender e sentir o que é o flamenco, mas sempre haverá jovens fãs que gostam desse tipo de música e é por isso que não risco de se extinguir. O flamenco nunca morrerá. É uma vertente que tem atitude e muita força, então mesmo aqueles que não o entenderem em profundidade saberão estar diante de um tipo muito especial de música.
A tecnologia tem essa função hoje, fazer com que as pessoas tenham a oportunidade de conhecer, ouvir e se apaixonar pelo flamenco ou qualquer outro tipo de música, algo que antes era praticamente impossível. Há alguns anos isso só aconteceria diante de uma banda ao vivo. Acredito que a tecnologia se tornou algo muito legal para quem quer aprender sobre música.
A gravação de Amigo, de Roberto Carlos, e a música brasileira
Juan Gómez Chicuelo: A música do Brasil sempre me atraiu com sua harmonia e seu ritmo. Eu acredito que hoje esse tipo de música tem uma influência bastante importante no flamenco, especialmente nas harmonias. Às vezes alguns ritmos de flamenco incorporam harmonias, ritmos ou acordes brasileiros.
Uma parceria de sonhos
Juan Gómez Chicuelo: De João Gilberto a Elis Regina ou Tom Jobim… Existem muitos músicos que contribuíram e que naturalmente inspiram ideias para meu trabalho. Há algo muito latente e presente na minha discografia onde incorporo novas melodias, até mesmo em minhas composições. Uma parte do meu coração sempre vai ver a beleza do flamenco como algo lindo e maravilhoso, tanto quanto a música brasileira.
Um legado e o futuro
Juan Gómez Chicuelo: Em relação ao passado da música que faço – e seu futuro – é que não sinto nenhuma pressão. Isso acontece porque cresci e aprendi essa fusão de gêneros com inúmeras colaborações com outros artistas. Fazer tudo isso é bastante natural na minha vida. Embora eu venha do flamenco mais tradicional e clássico, logo no início comecei a ouvir todos os tipos de música, seja a música clássica, o jazz ou a música brasileira e cubana … E aprendi demais com todas elas.
Além disso, quando você faz música você não precisa dar muitas explicações, apenas tente ser feliz sem se cobrar e mostre o que você conhece no seu melhor. Desde que ouvi que iríamos pela primeira vez ao Brasil sempre pensei que um dia poderia fazer uma parceria com João Gilberto. Seria incrível porque ele é um dos meus ídolos.
Tive a oportunidade de tocar em comerciais de televisão e filmes importantes. Isso me deu a oportunidade de chegar a outras pessoas. Gostaria de levar minha música para pessoas que realmente gostam e adoram o que faço, especialmente as pessoas fora do flamenco. E gostaria de ser ouvido em todos os cantos do mundo, é claro!
Música e política
Juan Gómez Chicuelo: Para dizer a verdade eu tento viver alheio a essa questão política. É claro que, infelizmente, guerras que acontecem em vários lugares do mundo me deixam muito triste. O melhor que consigo fazer é levar minha música e tentar trazer alguma felicidade para quem precisa. É isso que tento fazer.
Futuro
Juan Gómez Chicuelo: Meus projetos estão sempre ligados ao universo da música. Estou pensando em gravar um novo trabalho com Marco Mezquida. O álbum Conexión é belíssimo, estamos tendo bons momentos com ele. Estamos preparando três novas músicas para um segundo álbum e acho que elas estarão com a mesma energia e magia do primeiro.
Também estou pensando em gravar outro álbum solo, nada muito distante da música flamenca. Haverá também um novo álbum com alguns artistas do Paquistão e música sufí, com o músico Qawwali, com quem trabalhei por algum tempo. Quero muitos projetos e espero preencher o meu desejo de fazer mais coisas com esse entusiasmo pela música. Que esses caminhos me façam, se isso for possível, ainda mais feliz que já sou, o que é muito.