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Fabiana Cozza, o racismo e o simulacro

4 de julho de 20187 min read

Se existe uma artista que pode se gabar de ter os pés atolados no mundo do samba, ela se chama Fabiana Cozza. Claro, existem outros tantos, mas hoje o momento é da cantora paulista filha de Osvaldo dos Santos, um dos mais importantes puxadores da Camisa Verde e Branco, escola tradicional do carnaval paulistano.

Quem digita no Google o nome de Fabiana nos últimos dias dificilmente encontra algo sobre seus seis álbuns, sendo um deles ao vivo, ou então sobre alguns de seus muitos musicais como Rainha Quelé, em homenagem a Clementina de Jesus; “O Canto da Guerreira”, em homenagem à obra de Clara Nunes, e ainda de “Aquarelas de Ary Barroso”. Escolhida para viver a lendária sambista Ivone Lara nos teatros, a cantora paulista sofreu uma verdadeira avalanche de críticas questionando sua etnia, o que a levou a renunciar ao projeto, que por sua vez passou a procurar uma nova protagonista.

O que está em jogo nesse momento vai muito além do racismo propriamente dito, um caso extremamente claro e triste nessa situação. Na declaração de Fabiana em sua rede social, o que fica claro é que tempos nebulosos trouxeram distopias que parecem ter adentrado até mesmo o mais democrático dos meios, o samba.

Em seu perfil, Fabiana declarou:

O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. // Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos”

Escolhida por Jô Santana para ser protagonista do musical “Dona Ivone Lara – Um sorriso negro – O Musical”, Fabiana não escondeu a mágoa ver não só seu legado desconsiderado por tantos em uma rede social. Parceira de Dona Ivone Lara, dividiu o palco com a matriarca do samba até sua morte, no último dia 16 de abril, daí a emoção que envolve todo o episódio da última semana.

O que aconteceu com Fabiana Cozza vai além da distinção de cor pelo qual muitos fãs identificariam seus ídolos. O desconhecimento de causa sempre foi o pai do preconceito e não faltam exemplos na música pop. Provavelmente o maior compositor do mundo moderno, Bob Dylan foi retratado sob vários espectros no longa I’m No There, lançado no Brasil como Não Estou Lá, dirigido por Todd Haynes (Velvet Goldmine) e baseado na vida do lendário músico americano. Entre todas as leituras que envolviam o músico, chocou o público vê-lo retratado como uma mulher, interpretado por Cate Blanchet. Alguns anos antes, disposto a voltar ao palco, o Queen de Brian May e Roger Taylor escolheu Paul Rodgers como responsável por carregar o legado de Freddie Mercury. Não deu certo.

Criticado constantemente por não ser homossexual ou assumir os trejeitos do vocalista do Queen, de nada adiantou ter uma das mais belas vozes da história do rock e ser um dos maiores ídolos do próprio Freddie Mercury. A mesma resistência não ocorreu com Adam Lambert, descoberto em um reality show e que até hoje se posta a frente da banda evocando os mesmos trejeitos do vocalista original.

Voltando ao caso de Fabiana Cozza e uma realidade cada vez mais polarizada no Brasil, o que se percebe é que a essência da música parece estar fugindo ao controle daqueles que hoje deveriam se tornar o bastião de um movimento tão democrático como o samba. Não há samba de roda sem o público e o público parece não entender que, assim como disseram dois outros monstros sagrados do samba, Sombrinha e Luiz Carlos da Vila, “o show tem que continuar”.

Fazendo uma analogia com o blues, é como se Joe Bonamassa nunca pudesse ser ovacionado como BB King, mesmo tendo feito uma geração de artistas se inspirar no seu trabalho para conhecer nomes como Lightnin´Hopkins ou Muddy Waters. Jeff Beck, Keith Richards e Charlie Musselwhite que o digam, afinal, caminharam lado a lado com todas as lendas de um gênero que viu praticamente todos seus pilares encerrarem suas histórias. E com suas origens totalmente diferentes de qualquer um deles.

Não é exagero dizer que o legado de Fabiana Cozza foi ignorado nesse processo. Intérprete mais que ideal para reviver a história de Dona Ivone Lara, Fabiana foi preterida em prol de um injusto simulacro da artista em questão, o que por si só gera revolta pelo preconceito e preocupa muito além da música, foco desse site.

Cada vez mais presa ao seu passado, a música contemporânea parece condenada a viver como cópia de seu passado, chamando de herege àquele que ousar pensar o contrário e descontextualizando praticamente tudo o que foi conquistado à base de muita luta. E o mundo não está pronto para abrir essa lacuna em sua história.

Estejam onde estiverem, BB King com certeza está aplaudindo Joe Bonamassa, Freddie Mercury vibrou com o talento de Paul Rodgers e Dona Ivone Lara, sem a maior sombra de dúvida, estaria orgulhosa de ver uma de suas maiores fãs e amigas reviver sua história nos palcos.

Anderson Oliveira

Diretor de Arte há duas décadas, fã de Grateful Dead e Jeff Beck, futuro trompetista e em constante aprendizado. Bem-vindos ao meu mundo, o Mundo de Andy.

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