“A música eletrônica é feita hoje por um certo tipo de pessoas, tipicamente de classe média, que provavelmente tem um estilo de vida bastante confortável”.
A frase que você lê acima foi dita por Jeff Mills, pioneiro do techno, durante uma entrevista ao France24 para a promoção de seu novo trabalho, que tem como mote os 50 anos do primeiro homem na lua. E é a partir dela que mergulhamos em uma realidade cada vez notável no universo da música eletrônica, a de que sua função se tornou somente entretenimento.
Jeff Mills não é qualquer um. Fundador do coletivo Underground Resistance, está para a música eletrônica como Hendrix para o rock ou Mozart para a música clássica. Nascido em Detroit, viu de perto o preconceito contra a comunidade negra durante a realidade do país durante o governo Reagan, o que levou à criação do coletivo Underground Resistance, que se baseava no conceito de auto-exploração e busca contínua de mudança em seu círculo social. Inspirado nos ideais dos Panteras Negras da década de 70, tinha como foco a união entre a comunidade de afro-americanos de classe baixa e sua busca contínua por melhorias.
Vertente que vai além do que se ouve, o techno é seguramente uma das mais politizadas da história da música e que hoje vive um momento de ebulição tão impressionante quanto há três décadas, quando saiu do underground para emergir como suas batidas pesadas permeadas por elementos de jazz, funk e hip hop.
Outro bom exemplo é a house music, que seguiu o curso natural da música após a decadência da disco music dos anos 70 e sempre teve uma ligação muito estreita com a luta por direitos LGBT. Por mais que a figura do DJ tenha caído hoje – erroneamente – no dito popular de que basta apertar botões, basta alguns minutos no Google para ver o quanto cada uma das vertentes tem em sua raiz um contexto muito mais complexo do que se imagina.
“A música, em especial a dance music, costumava ser politizada. A composição das pessoas nos anos 1970 durante o período da disco e início dos anos 80 era muito misturada entre gays e heterossexuais, pessoas de todos os lugares, era um caldeirão”. – Jeff Mills, durante entrevista ao France24.
A preocupação de Mills faz muito sentido. Cada vez mais dirigida a um público de poder aquisitivo mais alto, a experiência ligada à música eletrônica parece ter se tornado simplesmente uma fuga da realidade para quem tem a condição de ver um seleto grupo de DJs, dos quais o próprio americano faz parte, em cenários deslumbrantes e inacessíveis. E isso pode estar se tornando um caminho sem volta.
Quando inventou o remix, ainda nos anos 70, período em que a disco music se enraizava na comunidade LGBT americana, Tom Moulton percebeu que o DJ se mostrava incapaz de manter o público na pista durante um longo período devido aos cortes abruptos no som, dando assim início ao seu projeto de “emenda” de trechos de músicas, tornando a experiência mais longa e passível de uma imersão. Dali pra frente a música nunca mais foi a mesma coisa. Agora imagine isso além, nos tempos de hoje.
Criados para embalar as festas gays embaladas por soul music no início da década de 70, o remix se tornou obrigatório para qualquer DJ que hoje, ironicamente, corre o risco de apresentar seu trabalho para um público muitas vezes intolerante e em espaços onde o público gay não é bem-vindo. Um paradoxo impensável por Tom Moulton.
É fato que 90% dos próprios DJs desconheça as raízes do tipo de música que muitas vezes é seu ganha-pão, mas a falta de bom senso parece ter se tornado uma máxima da sociedade moderna.
Já criticada na década de 90 pela própria vocalista do grupo irlandês The Cranberries, da saudosa Dolores O´Riordan, Zombie ganhou uma porção de remixes desde aquela época, com os mais variados vocais e pelas mais variadas vertentes. Em entrevistas a líder do grupo nunca escondia sua indignação, já que a música tratava de temas delicados como guerra e fome. Mais de duas décadas depois de seu lançamento, Zombie segue embalando jovens mundo afora com seu refrão “What’s in your head, in your head”. E a resposta para isso parece retórica.
Todo esse contexto mostrado acima passa longe da crítica direta ao estilo, mas ao contexto em que isso se aplica. Provavelmente o segmento com maior número de matérias aqui no Passagem de Som, o universo da música eletrônica acompanha tudo o que o cerca, e assim como o jazz, o blues, até mesmo a música clássica, parece ter se contaminado pela simples condição de música ambiente e catalisador de uma fuga da realidade.
Quando artistas como Jeff Mills, que em seus sets se arrisca como poucos ao fundir tantos elementos, manifestam a preocupação com a música que produzem, é porque algo está acontecendo. Em um momento onde a oferta de música parece ser muitas vezes superior até à sua demanda, ter atenção no conteúdo disso é essencial.
Por outro lado existem cada vez mais núcleos dedicados a mostrar que a música eletrônica é tolerância e integração, além de levar a música para novos espaços. O Tantša é um bom exemplo, já que dá entrada gratuita às drags e pessoas que forem montadas à festa. Estimular a desconstrução do perfil atual de música eletrônica é um fator fundamental nesse processo. Esse caminho também é adotado pelos descoladíssimos núcleos da Gop Tun, Selvagem, Mamba Negra e muitos outros.
Ainda que se pense o contrário, não perder de vista a origem de movimentos e de seus pioneiros é também dar garantia à qualidade de uma vertente. Se um dia Nietzsche afirmou que a vida sem música era um grande erro, cabe a nós fazer com a vida com que ela não seja nunca um balão vazio servindo de fuga da realidade.