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John Lennon às portas do inferno

24 de março de 20226 min read

Lançado postumamente como “Live in New York City”, um dos registros mais importantes da carreira solo do ex-Beatle completa meio século de história escondendo do público uma história que quase acabou com sua carreira logo após a saída do grupo inglês.

Qualquer coisa relacionada aos Beatles por si só já é histórica, seja ela um artefato ou um relançamento, mas quando se envolve algo em áudio ou vídeo, obviamente temos um momento onde qualquer exagero é permitido. Get Back, documentário de Peter Jackson, que o diga, afinal, foi o grande acontecimento musical de 2021. Essa histeria se reduziu com a carreira solo dos integrantes da banda, mas certos episódios marcam momentos de virada profundas em suas vidas, caso de John Lennon – Live in New York City, disco que praticamente colocou a vida do ex-Beatle às portas de um pesadelo diário de anos, quase capaz de encerrar de sua carreira, e que completa 50 anos em 2022.

Dá para achar em LP, em CD e, se bobear, até mesmo em DVD. Sem o refinamento dos atuais lançamentos e sem os hits que marcaram sua carreira, na banda e em carreira solo, o disco gravado no Madison Square Garden, em New York, marcou um período na carreira de John Lennon que se cruza com a campanha para presidente que teve Richard Nixon contra George McGovern, além do relacionamento com Yoko, que atravessou uma de suas fases mais conturbadas, envolvendo até mesmo uma traição e separação.

Gravado ao lado da Elephant´s Memory, banda recrutada por Lennon logo ao chegar em Nova York após a dissolução dos Beatles, o show foi a única apresentação ao vivo associada a uma jamais realizada tour do álbum Some Time in New York, que trazia na bagagem seu caráter contestador,  o que musicalmente já havia causado a ira da crítica especializada. Na época, ligado ao Movimento, grupo progressista que tinha na imagem do ex-Beatle a chance de mobilizar um grupo maior de pessoas, Lennon tinha como desejo realizar o máximo de shows gratuitos para transmitir uma mensagem de paz, mas havia quem não achasse essa ideia das melhores.

A presença do ex-Beatle na cidade apavorou todo o partido Republicano, que iniciou uma caçada implacável para deportar o músico dos Estados Unidos no início dos anos 70. Na ânsia para tirar Lennon de circulação, executou grampos telefônicos, iniciou uma perseguição silenciosa seguindo passo a passo o dia do ex-Beatle, além de uma pressão sobrenatural sobre Yoko, que se via dividida entre o sequestro de sua filha, Kyoko, pelo pai, Anthony Cox.

Essa e tantas outras histórias que desencadeadas a partir do registro ao vivo de Lennon podem ser conferidas em detalhes, alguns chocantes, no livro John Lennon em Nova York, publicado pelo jornalista James A. Mitchell e lançado no Brasil, mas o cenário até a gravação do disco já trazia peças que se tornariam fundamentais para entender a vida do artista inglês nos Estados Unidos. A primeira delas certamente a indisposição com Yoko, que fazia parte da banda, tanto da imprensa como da própria da Elephant´s Memory.

Live in New York City é o ponto mais alto de algo que poderia ter sido e não foi. Ouvir esse álbum sabendo disso muda praticamente tudo o que pensamos sobre John Lennon, especialmente musicalmente, já que a partir dessa gravação entendemos os rumos que sua carreira tomou até a obtenção do Green Card, em 76. Está nele o embrião de todo desencanto com a vida política e da separação de Yoko, que se refletiriam em Walls and Bridges (1974) e Rock ‘n’ Roll (1975). Mais que isso, no show registrado em Nova Iorque está pela primeira vez um artista que sabe estar diante de uma tempestade, o prenúncio da pior fase de sua vida. E isso se reflete no palco, especialmente nos bastidores. A certeza do fim do projeto já permeava a cabeça de Lennon, que logo dissolveria a banda, amigavelmente.

Esse segundo registro ao vivo de Lennon foi liberado ao público oito anos após sua morte, em 1980. E desde então sempre foi tratado como um lançamento menor, sem refino técnico e até mesmo descartável, já que toda sua discografia passou por um processo de masterização que abrilhantou ainda mais álbuns como Imagine (1971) e Mind Games (1973). Ainda assim, capta de forma única o desapego musical dos tempos da banda inglesa para um novo grupo, que poderia – e como poderia – ter tido sua relevância no mundo da música.

Anderson Oliveira

Diretor de Arte há duas décadas, fã de Grateful Dead e Jeff Beck, futuro trompetista e em constante aprendizado. Bem-vindos ao meu mundo, o Mundo de Andy.

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