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Marvin Pontiac, o médico e o monstro

6 de janeiro de 20189 min read

Marvin Pontiac dificilmente terá uma de suas faixas tocadas em alguma rádio nos quatro cantos do mundo e nunca fará um único show na vida, mas ainda assim estará na lista de “Discos da Vida” de gente como Iggy Pop e Leonard Cohen. Parece uma piada de mau gosto, e talvez até seja, mas é essa a melhor forma de se contar uma das histórias mais intrigantes do mundo da música das últimas décadas.

De volta à cena nos últimos dias de 2017, quando a preocupação do mundo era apenas com a ceia de Natal e o destino do réveillon, Marvin Pontiac teve faixas até então não lançadas finalmente disponibilizadas no mercado. The Asylum Tapes, disco que sai 18 anos após a “coletânea” The Legendary Marvin Pontiac: Greatest Hits, mostra um pouco mais sobre o alter ego de John Lurie, um daqueles nomes que o tempo talvez não dê os devidos créditos com o passar dos anos, mas que certamente já passou pela sua frente em alguma produção cinematográfica ou até mesmo com seu trabalho ao lado do Lounge Lizards, grupo de relativo sucesso durante a década de 80.

Tenha em mente, Marvin Pontiac não existe. É somente um alter ego criado por John Lurie para lançar um álbum com referências que transitam pelo blues e os ritmos étnicos e que foi lançado sem muito alarde na virada do século. Aclamado como um dos grandes discos da época por nada menos que David Bowie, a crítica olhou para Marvin Pontiac e precisava ver algo lá. Foi aí que John Lurie deu forma a um personagem de história tão fascinante que parece ser muito mais interessante acreditar em sua existência do que simplesmente lidar com o fato de ser somente o alter ego de um multifacetado artista.

Prodígio musicalmente, Marvin Pontiac tem suas raízes no Mali, um dos raros países africanos sem saída para o mar. Filho de imigrante com uma americana judia, o músico aprendeu harmônica durante a década de 40 e mudou-se para Chicago, onde se envolveu em uma briga de bar com Little Walter. Nela levou uma surra difícil de esquecer e foi acusado de ter copiado o estilo do lendário bluesman. Vale lembrar que Little Walter era praticamente um anão, o que já dava um ar fantasioso para a história, mas….

A vergonha de Marvin teria sido tamanha que acabou decidindo abandonar Chicago e se mudar para o Texas, abandonando a música no âmbito profissional e se tornando assistente de encanador. Desde então passou a conviver com transtornos psiquiátricos que o levavam a acreditar ter sido abduzido por alienígenas durante os anos 70.

Seguindo as crenças do pai, acreditava que câmeras roubavam as almas das pessoas e por isso não aparecia em retrato algum. Seus únicos registros derivam somente de alguns poucos borrões de sua silhueta justificavam sua presença. Sua morte ocorreu em 1977, quando foi atropelado por um ônibus em Detroit. Era o fim da história de um dos músicos mais incompreendidos da história. Ou não.

Suas gravações foram encontradas em 1999 e depois e lançadas em formato de coletânea, daí o nome de The Legendary Marvin Pontiac: Greatest Hits para um primeiro álbum… Dentro do disco, composto por 14 faixas, uma viagem transcendental com elementos étnicos, solos de saxofone, uma voz cavernosa ao estilo Tom Waits e um pé inteiro mergulhado no blues. Um som tão hipnótico que se torna difícil acreditar ter sido feito por alguém normal.

Voltando ao mundo real, Marvin Pontiac é simplesmente John Lurie. Seus comparsas nessa farsa maravilhosa são Marc Ribot, John Medeski (aquele mesmo do trio Medeski Martin & Wood), Billy Martin, G. Calvin Weston e Tony Scherr. Tudo mantido em segredo. Tudo envolto a um mistério que torna o projeto uma obra ao melhor estilo de Robert Louis Stevenson, responsável por O Médico e o Monstro, clássico cinematográfico dos anos 40. Porém nesse caso fica difícil definir quem ocupa qual lado da moeda.

O lançamento de The Asylum Tapes, que supostamente traz registros de Pontiac durante sua permanência em um hospício após os delírios de abdução seguem trazendo um realismo que impressiona. São composições que dão ainda mais força ao alter ego criado anos antes, falando de loucura e se apropriando de uma estética rústica, já que teria sido gravado em um aparelho de quatro canais amador. O lançamento tímido, sem alarde algum, pegou de surpresa quem acessa as plataformas digitais. Já era o suficiente.

Conseguir atingir tamanho impacto com um lançamento do tipo em tempos de internet não é algo fácil. Ok, na virada do século acessar o Napster não era tão acessível assim, mas ainda assim haviam canais dos mais vários tipos falando de música. Provavelmente o exemplo mais impactante nos últimos anos tenha sido o álbum In Rainbows, do Radiohead, que foi lançado do nada e de forma gratuita, e o ressurgimento com o adeus de Bowie em Black Star.

Fala-se que a inspiração de Lurie teria sido John Fahey, guitarrista que nos anos 50 criou o alter ego Blind Joe Death inspirado no trabalho de ícones do blues como Blind Lemon Jefferson, Blind Blake, Blind Willie Johnson, Blind Boy Fuller, de quem John era fã, mas a verdade ninguém nunca saberá ao certo. O culto a Blind Joe Death permaneceu por um longo período, principalmente por fças e crítica adorarem todo ocultismo por trás de Robert Johnson.

Produtor de sucesso até hoje, Lurie sempre explorou o tema ao longo de sua carreira, chegando a fazer sucesso na criação de algumas séries de TV. E em meio a tudo o que produzia, o que é falso ou verdadeiro nunca ficaram tão claros dentro de sua obra. Bem relacionado no meio artístico e amigo de artistas como Matt Dillon, Tom Waits, Willem Dafoe e Dennis Hopper, um dos ídolos de David Bowie nunca escondeu o orgulho de sua obra tão surreal. Segundo o americano, as pessoas queriam e até hoje querem acreditar na existência de Marvin Pontiac.

Como certa vez afirmou em entrevista ao site Emusic, “as pessoas ficariam chateadas se soubessem que Marvin Pontiac era somente um cara insano inventando um personagem”.

Anderson Oliveira

Diretor de Arte há duas décadas, fã de Grateful Dead e Jeff Beck, futuro trompetista e em constante aprendizado. Bem-vindos ao meu mundo, o Mundo de Andy.

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