Sacerdotisa do blues, a haitiana Moonlight Benjamin vem ao festival trazendo a herança da religião de matriz africana, carregada de boas energias contra o preconceito, e explorando os caminhos do blues.
Provavelmente, quando você ouvir a palavra “Vodu”, vai instantaneamente pensar na célebre frase “Vodu é pra jacu”, imortalizada no desenho do Pica-Pau, certo?
Frequentemente lembrado como uma religião de “magia negra”, onde bonecos de inimigos são espetados com agulhas, o vodu sofreu, pelo Ocidente, uma deturpação tão absurda que é preciso deixar tudo isso claro antes de seguirmos adiante.
Nascido no Benin, o vodu é uma religião tradicional africana que envolve o culto aos voduns — divindades ligadas à natureza, aos ancestrais e às forças do universo. Poderíamos ir muito além, mas essencialmente é o que precisamos saber neste momento.
A religião se expandiu pela África, mas acabou sendo levada para as Américas, principalmente para o Haiti, onde se transformou e se misturou com elementos do catolicismo e de outras tradições africanas, dando origem ao vodu haitiano, que ficou mais conhecido no mundo.
Para se ter ideia de seu alcance, o vodu teve um papel central no nascimento da Revolução Haitiana (1791–1804) — a única revolta de pessoas escravizadas bem-sucedida da história moderna, que resultou na independência do Haiti e no fim da escravidão no país.
Pronto, já desmontou seu preconceito? Ah, sim — falta a história do bonequinho…
Chamados de “bonecos vodu” ou “poppets”, eles nunca existiram de verdade dentro dessa religião. Isso é reflexo de uma cultura colonizadora americana e europeia que considerava as religiões de matriz africana como “bárbaras” e “ameaçadoras”. Afinal, a revolução havia se dado a partir da mobilização de um sacerdote vodu no Haiti.
Some a isso décadas de exploração comercial e demonização hollywoodiana, e as palavras “vodu + magia negra” acabaram se tornando o retrato da maldade — mas nunca foram.
Chegamos agora a New Orleans.
Trazido para a América, o vodu também se misturou à cultura afro-americana, ao catolicismo e ao espiritismo do sul dos EUA. Surgiu, inclusive, uma vertente própria: o Louisiana Voodoo. E quando tudo isso se cruzou com a música, o resultado foi natural — como mostra a história com o lendário embaixador de New Orleans, Dr. John.
Talvez o representante mais simbólico do vodu na cultura pop, Dr. John levou para o palco toda a estética da religião — com colares, penas, ossos e caveiras — evocando o imaginário vodu não como caricatura, mas como reivindicação da cultura marginalizada de sua cidade.
Fica a dica dos álbuns Gris-Gris (1968) e The Sun, Moon and Herbs (1971), que misturam funk, blues, soul e percussões tribais.
Pulamos agora para o SESC Jazz.
Escalada para show no SESC Pompeia, a haitiana Moonlight Benjamin é conhecida como a “sacerdotisa do blues”.
Artista que cresceu em um orfanato haitiano, desde cedo se envolveu com o canto religioso. Mais tarde, estudou teologia e foi ordenada pastora protestante — algo que já dá a dimensão do quanto ela transita entre fé e música.
Com guitarra na mão, usou o blues como fio condutor de toda essa carga histórica que falamos até agora.
O show que acontece nesta semana no SESC Pompeia é mais do que o repertório de seus quatro álbuns.
No palco, várias faixas de seu último trabalho, Wayo (2023), apresentam uma música pesada, intensa e repleta de riffs.
Para quem se permite ouvir suas faixas, tudo soa diferente e, ao mesmo tempo, familiar — o que só reforça o papel do festival como um evento que nos conecta ao jazz em suas origens mais profundas.





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