Existe algo na água que brota no centro-sul dos Estados Unidos. Berço de uma gama de bandas que levaram sua musicalidade a um patamar tão alto, daqueles onde só o fato de ser feita nessa região se transformou em gênero, essa região dos Estados Unidos conseguiu através da música construir uma imagem aos fãs de blues e soul mundo afora que basicamente recuperou o orgulho pela região, superando parcialmente um passado repleto de manchas difíceis de apagar.
Tudo o que envolve o Southern Rock faz parte de um castelo de cartas que ruiu de forma definitiva no último fim de semana, na cidade de Charlottesville, Virgínia, região sudeste dos Estados Unidos. Ironicamente o mesmo lugar onde nasceu um dos pais da democracia americana, Thomas Jefferson, e onde Hillary Clinton teve esmagadora vitória sobre Donald Trump nas últimas eleições.
Liderados por Jason Kessler, responsável pela organização da Unite the Right, uma marcha tinha como intuito confrontar a decisão da cidade em remover símbolos confederados, em especial a estátua do general confederado Robert E. Lee, um dos principais defensores da escravidão.
Parecia improvável, mas milhares de pessoas foram às ruas gerando um confronto onde a intolerância esteve em minoria, mas claramente saiu vencedora após se revelar da pior forma. Todos os detalhes do confronto ocorrido no fim de semana pode ser lido em qualquer site, mas a grande questão é: o que isso tem a ver com a música? TUDO.
Para se entender a razão desse texto é necessário mergulhar fundo na história de bandas como o Lynyrd Skynyrd e o que sua imagem se tornou ao longo dos últimos anos. Provavelmente o maior patrimônio do Southern Rock – aquele como conhecemos – a banda lidou com essas referências ao passado de escravidão do Sul dos Estados Unidos já em seu maior hit, Sweet Home Alabama.
Existem teorias controversas, mas o maior clássico do Lynyrd Skynyrd nasceu de uma resposta a Neil Young nas faixas Southern Man e Alabama, ambas criticando a questão da escravidão nessa região do país. Embora nunca tenha ficado claro, o que se tem de mais certo é que o lendário Ronnie Van Zant, vocalista da banda americana, sempre se manifestou abertamente sobre o assunto e sempre se mostrou contra os princípios de George Wallace, governador do Alabama e defensor das práticas escravagistas.
Ao longo daqueles anos o orgulho sulista se manifestou de forma tão intensa através da música que a bandeira dos “Estados Confederados da América” passou a ser tolerada em espaços públicos americanos, assim como os símbolos da Guerra de Secessão, ocorrida entre os anos de 1861 e 1865. Mesmo controversa, se tornaria aos olhos dos fãs de música como um símbolo que representava “a bandeira do Southern Rock”.
Tudo o que aconteceu nos anos Lynyrd Skynyrd durante os anos seguintes não é novidade. A tragédia que vitimou parte da banda em 1977, as novas formações até a presença do irmão mais novo de Ronnie, Johnny Van Zant, nos vocais, que resultou em uma sequência de lançamentos que ultrapassaram a barreira do novo século, mas não da forma como a banda pregara décadas antes.
Em entrevista ao Passagem de Som, Ron Eckerman, empresário do Lynyrd Skynyrd em sua ascensão meteórica na década de 70, declarou que “a cena do Southern Rock praticamente morreu junto com a banda” no acidente que vitimou Ronnie Van Zant. Também abordou a questão da paixão do vocalista pela cultura do sul dos Estados Unidos.
“Há duas maneiras de olhar para essa bandeira e é um símbolo muito racista para algumas pessoas. Mas do nosso ponto de vista era um símbolo do orgulho sulista, nascemos e crescemos no sul e é por isso que colocamos a bandeira. O Ronnie tinha tanto orgulho da bandeira que no livro eu descrevo um incidente em que ele ficou muito chateado porque a bandeira caiu no chão. Para ele, ela havia sido profanada, então ele mandou queimá-la. Ele também escreveu Sweet Home Alabama, que era uma resposta à música Southern Man, de Neil Young, e também mostra como ele tinha orgulho de ser do sul”, declarou Ron.
Os anos passaram e, mesmo com inegáveis conquistas sociais como a eleição do primeiro presidente negro em sua história, os Estados Unidos também jogaram pra baixo do tapete a crescente posição política e social do chamado público White Trash, como são conhecidas as pessoas brancas de baixo estatuto social como operários, camponeses, lavradores, entre outros. Novamente nos perguntamos o que isso tem a ver com a música? TUDO.
Existe uma visão romântica do Southern Rock como conhecemos e o que ele se tornou nos Estados Unidos. Com álbuns como God & Guns (2009), o Lynyrd Skynyrd passou a receber informalmente o apelido de Lynyrd Skinheads por parte de fãs e da imprensa devido ao público que normalmente comparecia aos seus shows. Basta frequentar fóruns da lendária banda americana e perceber que existe algo de diferente em referência ao som praticado na década de 70 e o comportamento de seus fãs na atualidade.
Um bom reflexo disso aconteceu quando Gary Rossington, único integrante da formação original da banda em atividade, declarou a CNN que “através dos anos, pessoas como a KKK (Ku Klux Klan) e skinheads adotaram a bandeira Dixie, afastando-a de sua tradição e do patrimônio dos soldados, que é o que era” e completou com “Nós não queremos passar isso para os nossos fãs”.
A declaração foi suficiente para uma enxurrada de críticas nos perfis da banda, o que levou o guitarrista a se retratar, dado que a bandeira dos Estados Confederados sempre foi um patrimônio no show da banda.
Outra banda que passou a usar a bandeira Dixie nos shows foi o Pantera. Mesmo com declarações contínuas do vocalista Phil Anselmo após o término do grupo de que tudo era feito da forma mais inocente possível, a crescente onda White Trash americana resultou em um dos episódios mais lamentáveis dos últimos anos, quando o vocalista repetiu um gesto nazista durante um show aos gritos de “White Power” em cima do palco. Recriminado aos quatro cantos do planeta, se desculpou, mas nunca apagou a mancha adquirida naquela ocasião.
Um movimento que passou a se tornar comum nos últimos anos foi a migração de bandas denominadas como “de Southern Rock” para “Jam Bands” e isso não foi a toa.
Em uma das raras entrevistas a um veículo brasileiro, Derek Trucks falou com o Passagem de Som sobre esse movimento das bandas americanas. Na época o guitarrista fundava a incrível Tedeschi Trucks Band ao lado de Susan e se mantinha como responsável pelas seis cordas ao lado de Warren Haynes na Allman Brothers Band. Na ocasião disparou:
“Nunca me senti confortável com o termo Southern Rock. Nos Estados Unidos ele pode ter uma conotação de algo negativo. Tenho orgulho de toda a música que foi produzida no Sul, como Ray Charles, The Allman Brothers, Son House e muitos outros. O Sul é onde muitos desses gêneros colidiram, e de repente blues, jazz e música gospel não eram mais completamente separados. Acho que nossa banda se sai bem em integrar essas tradições no nosso próprio som, e só porque essa é a música que nós amamos e queremos criar e tocar”, declarou.
A crescente onda conservadora nos Estados Unidos, especialmente após a eleição de Donald Trump foi o estopim que toda a geração marcada pela fábula do racismo reverso precisava para dar as caras. E isso aconteceu no último fim de semana.
Que fique claro acima de tudo. Nunca saberemos – ou torcemos para não saber – realmente a índole de artistas como Johnny Van Zant ou Phil Anselmo. Seus exemplos servem muito mais para mostrar o que vai além dos amplificadores e hinos como Free Bird. Não saberemos nem mesmo o que se esconde nas pequenas casas do Sul do Alabama e pequenos festivais onde bandas nascem baseadas na visão deturpada da realidade e sem o ideal de igualdade que parece estar sendo riscado por alguns poucos americanos.
Mesmo com tristes episódios, custa a todos acreditar que tudo tenham chegado a tal ponto. Porém a presença tão marcante da bandeira Dixie no ocorrido em Charlottesville praticamente sepulta a imagem do Southern Rock como o mundo conheceu um dia. Se tornou impossível olhar para isso com o romantismo de Ronnie Van Zant e temos que ser claros sobre esse assunto.
Com shows agendados no Brasil em dezembro desse ano, como vamos reagir quando a águia americana surgir envolta à bandeira dos Estados Confederados nos telões do palco ou então pendurada no pedestal de Johnny Van Zant?