Lançado em forma de tributo, Remix the Universe é o epílogo da carreira de um dos maiores alquimistas da música jamaicana. Em forma de tributo, o último álbum lançado por Lee “Scratch” Perry é a prova de que as sementes plantadas durante a sua extensa carreira começaram a geminar.
No mundo da música existem muitos heróis, artistas que se tornaram referência ao construir um legado capaz de mudar os rumos da música. Mas entidades existem poucas. Se tornar uma entidade vai muito além daquilo que o artista produziu em vida, da música que fez. Trata-se da capacidade de se tornar uma energia tão forte em novos tempos que a sensação que temos é que ele ainda está vivo. E de certa forma está, especialmente quando falamos de Lee Perry, que deixou nosso plano em 2021, aos 85 anos.
Dono de uma carreira das mais influentes no mundo do reggae (e da música como um todo), de dezenas de discos, Lee Perry não teve uma reta final de sua história fácil. Encarou uma pandemia de pouco mais de dois anos que o afastou do público, com quem tinha perfeita conexão, e de quebra viu seu lendário estúdio, o “Laboratório Secreto”, ser destruído em um incêndio junto a um incontável material produzido durante a vida.
Mas Lee Perry nunca foi só música. Quem teve a chance de o conferir ao vivo em uma das muitas passagens que teve pelo Brasil, sabe bem que quase 100% de seu show era pura energia, uma energia que ganhava forma no palco e, de repente, levava o público junto.
Seu último lançamento, Guide to the Universe, divulgado praticamente três meses após sua passagem, foi também o disco que elevou seu trabalho a uma escala ainda mais atmosférica. Não é a toa. Nele, há uma coincidência intrigante que une artistas visionários da música. O último sopro de genialidade antes do fim.
No caso de Lee Perry, foi a parceria com o New Age Doom, grupo de hippies americanos, e do saxofonista Don McCaslin, que coincidentemente tocou no álbum Blackstar, derradeiro trabalho da carreira de Bowie. Não era só reggae. Era mais que isso, e Remix the Universe é o passo seguinte de um projeto que por si só já era histórico.
Obviamente, por passar por tantas mãos diferentes, trata-se de um registro mais intenso que o original. Com remixes trabalhados por integrantes de bandas como Quicksand, Glassjaw e Tera Melos, o disco tem cara de plantação a ponto de geminar. Donos de um conteúdo bem diferente do produzido pelo jamaicano, fica claro o quanto cada banda foi influenciada por sua obra, mesmo não executando diretamente uma música como a sua.
Liderados pelos hippies americanos, o disco leva a música de Lee Perry por várias vertentes, passando pelo ermo ambient, em Holy Wings, e mergulhando na IDM (não confundir com EDM), em Life is an Experiment. Sim ela é realmente um experimento. Com cara de epitáfio, o último capítulo da carreira do jamaicano fica ainda mais divertido quando ouvido com bons fones e em alto volume. São camadas e camadas de uma sonoridade caótica, que abraça o jazz, o reggae e até o rock, nas suas mais variadas formas, como se a cada faixa invadíssemos ainda mais a sua mente. Ou ele a nossa.
Remix the Universe é hoje o ponto final, ao menos em teoria, de uma carreira que nunca vai acabar. Por isso, abrir a porta de possibilidades com um projeto tão fora da curva como a carreira de Lee Perry é mostrar que sua música não cabia mais nesse planeta. Era hora de remixar o universo.